Como também nos elegeu
nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis
diante dele em amor.(Efésios 1:4)
Assim como nos elegeu nele. Aqui,
o apóstolo declara que a eterna eleição divina é o fundamento e causa primeira,
tanto de nosso chamamento como de todos os benefícios que de Deus recebemos. Se
se nos pede a razão por que Deus nos chamou a participar do evangelho, por que
diariamente ele nos concede bênçãos em grande profusão, por que ele nos abre os
portões celestiais, teremos sempre que retroceder a este princípio, ou seja:
que Deus nos elegeu antes que o mundo viesse à existência.
O próprio tempo da eleição revela que ela é gratuita; pois, o que poderíamos merecer, ou em que consistiria o nosso mérito, antes que o mundo fosse criado? Pois quão pueril é o raciocínio sofistico, o qual afirma que não fomos eleitos porque já éramos dignos, e, sim, porque Deus previra que seríamos dignos. Todos nós estamos perdidos em Adão; portanto, Deus não poderia ter-nos salvo de perecermos por meio de sua própria eleição, se não havia nada para ser previsto. O mesmo argumento é usado em Romanos, onde, ao falar de Jacó e Esaú, diz ele:
"E ainda não eram os
gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal".
Porque, não tendo eles ainda nascido, nem
tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição,
ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama).(Romanos 9:11)
Embora, porém, eles ainda
não tivessem agido, algum sofista da Sorbonne poderia replicar: "Deus
previra o que eles poderiam fazer." Tal objeção não possui força alguma à
luz da natureza corrupta do homem, em quem nada pode ser visto senão matérias
para a destruição.
Ao acrescentar: em Cristo,
estamos diante da segunda confirmação da soberania da eleição. Porque, se somos
eleitos em Cristo, tal fato se encontra fora de nós próprios. Isso não tem por
base nosso merecimento, e, sim, porque nosso Pai celestial nos enxertou,
através da bênção da adoção, no Corpo de Cristo. Em suma, o nome de Cristo
inclui todo mérito, bem como tudo quanto os homens possuem de si próprios; pois
quando o apóstolo diz que somos eleitos em Cristo, segue-se que em nós mesmos
não existe dignidade alguma. Para que pudéssemos ser
santos. O apóstolo indica o propósito imediato, não, porém, o principal. Pois
não existe qualquer absurdo em supor-se que uma coisa possua dois objetivos. O
propósito em realizar uma construção é para que haja uma casa. Esse é o alvo
imediato. Mas a conveniência de se habitar nela é o alvo último. Era necessário
mencionar-se isso de passagem; pois Paulo de imediato menciona outro alvo - a
glória de Deus. Todavia, não há nenhuma contradição aqui. A glória de Deus é a
finalidade mais elevada, à qual a nossa santificação está subordinada. Desse fato inferimos que a
santidade, a inocência, e assim toda e qualquer virtude que porventura exista
no homem, são frutos da eleição. E assim uma vez mais Paulo expressamente põe
de lado toda e qualquer consideração de mérito [humano]. Se Deus houvera
previsto em nós tudo o que porventura fosse digno de eleição, então se diria
precisamente o contrário.
Pois a intenção de Paulo é
que toda a nossa santidade e inocência de vida emanam da eleição divina. Como
explicar, pois, que alguns homens são piedosos e vivem no temor do Senhor,
enquanto que outros se entregam sem reservas a toda espécie de perversidade? Se
Paulo merece credibilidade, a única razão é que os últimos conservam sua
disposição natural, enquanto que os primeiros foram eleitos para a santidade.
Certamente que a causa não segue o efeito, e portanto a eleição não depende da
justiça que vem das obras, a qual Paulo declara aqui ser a causa.
Além do mais, nessa
cláusula ele quis dizer que a eleição não abre as portas à licenciosidade, como
que dando aos ímpios ocasião a que blasfemem e digam: "Vivamos da maneira
que nos agrade, pois se já fomos eleitos, é impossível que venhamos a
perecer." O apóstolo está afirmando-lhes claramente que é uma atitude
ímpia dissociar a santidade de vida da graça da eleição; porquanto Deus chama e
justifica a todos aqueles a quem ele elegeu. É igualmente sem fundamento a
inferência que os cataristas, os celestinos e os donatistas extraíram destas
palavras, ou seja: que nos é impossível atingir a perfeição nesta vida. Esse é
o alvo em direção ao qual devemos manter todo o curso de nossa vida; nunca,
porém, o atingiremos até que nossa corrida haja terminado. Onde estão os homens
que se espantam e evitam a doutrina da predestinação como sendo um confuso
labirinto, que a reputam como sendo inútil e mesmo quase nociva? Nenhuma
doutrina é mais útil e proveitosa quando utilizada de forma adequada e sóbria,
ou seja, como Paulo o faz aqui, ao apresentar ele a consideração da infinita
munificência de Deus e estimular-nos a render graças. Essa é a legítima fonte
da qual devemos extrair nosso conhecimento da misericórdia divina. Se os homens
usassem um outro argumento, a eleição fecharia sua boca, para que não se
atrevam e não reivindiquem nada para si próprios. Lembremo-nos, porém, do
propósito para o qual Paulo discute a predestinação, a fim de que, arrazoando
com algum outro objetivo, não sigamos arriscadamente algum desvio. Diante dele em amor.
Santidade, aos olhos de Deus, tem a ver com uma consciência pura; pois Deus não
é enganado, à semelhança dos homens, pela pretensão externa; ele, porém, olha
para a fé, ou seja, para a veracidade do coração. Se você atribuir a Deus a
palavra 'amor', então significa que a única razão pela qual ele nos elegeu foi
o seu amor pela humanidade. Prefiro, porém, considerar o amor à luz da última
parte do versículo, ou seja: que a perfeição dos crentes consiste no amor; não
que Deus requeira somente amor, mas que ele é uma evidência do temor de Deus e
da obediência a toda a lei.
João Calvino(1509-1564)
Que a Graça do eterno
esteja com todos.
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