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Uma Análise à Luz da Neurociência e da Psicologia Complexa
A mente humana é um sistema dinâmico, integrado e em constante adaptação ao ambiente interno e externo. Entre seus modos de operação, dois padrões cognitivo-emocionais se destacam por sua frequência e impacto na qualidade de vida: a praticidade mental e a ruminação mental. Enquanto a primeira representa uma atitude funcional, orientada para a resolução de problemas e a flexibilidade psíquica, a segunda envolve um ciclo repetitivo, autoperpetuado de pensamentos negativos, frequentemente associado a transtornos como depressão e ansiedade.
Compreender esses dois modos de funcionamento — não como polos opostos fixos, mas como configurações dinâmicas de um sistema complexo — exige uma abordagem interdisciplinar que una evidências neurocientíficas com modelos teóricos sofisticados, como os propostos pela psicologia analítica (junguiana) e pela psicologia complexa.
1. A Ruminação Mental: Um Ciclo Neurocognitivo Autoperpetuado
A ruminação, de acordo com o modelo de Nolen-Hoeksema (1991), é caracterizada como “a tendência a se concentrar passivamente nos sintomas de sofrimento, nas suas causas e consequências, em vez de buscar soluções ativas”. Neurocientificamente, esse padrão está fortemente associado à hiperatividade da rede do modo padrão (default mode network — DMN), um conjunto de regiões cerebrais — como o córtex pré-frontal medial (PFCm), o córtex cingulado posterior (PCC) e o hipocampo — que se ativam quando o indivíduo está em repouso, não envolvido em tarefas externas, e voltado para o pensamento autorreflexivo.
Estudos de neuroimagem funcional mostram que indivíduos com alta ruminação apresentam maior conectividade funcional dentro da DMN e menor modulação por redes executivas — especialmente o sistema de controle executivo (frontoparietal network), responsável pela atenção direcionada, inibição de respostas impulsivas e flexibilidade cognitiva. Em outras palavras, a mente "fica presa" em loops internos, sem capacidade de desengatar e redirecionar o foco para o presente ou para ações concretas.
Essa hiperatividade não é meramente cognitiva: envolve também disfunções no sistema límbico, particularmente na amígdala — estrutura-chave no processamento do medo e da ameaça — e no circuito amígdala-córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC). Quando a amígdala está hiperativa e o dlPFC — responsável por regular essa resposta emocional — está hipofuncional, o indivíduo experimenta uma avalanche de afetos negativos sem capacidade de autorregulação.
A ruminação, então, torna-se tanto causa quanto consequência desse desequilíbrio: cada ciclo de pensamento negativo fortalece as sinapses associadas, consolidando vias neurais que favorecem mais ruminação — um fenômeno conhecido como potenciação sináptica de longa duração.
A Praticidade Mental: Um Estado de Equilíbrio Dinâmico
Em contraste com a ruminação, a praticidade mental não se refere apenas a “ser prático” no sentido vulgar — ou seja, focar apenas em soluções imediatas ou reduzir a experiência humana à eficiência instrumental. Antes, é um modo integrado de processamento psíquico que combina:
- Consciência situacional (atenção plena ao aqui-e-agora),
- Flexibilidade cognitiva (capacidade de mudar de estratégia mental),
- Autocompaixão e tolerância à ambiguidade (não se identificar rigidamente com pensamentos negativos),
- Engajamento com o mundo (incluindo ação intencional, criatividade e relação interpessoal significativa).
Neurologicamente, a praticidade mental está associada a um equilíbrio dinâmico entre três grandes redes cerebrais:
- A rede do modo padrão (DMN) — para autorreflexão e significado;
- A rede de saliência (SN) — para detectar o que é relevante emocional e sensorialmente;
- A rede executiva (CEN) — para planejamento, inibição e tomada de decisão.
Pesquisas em neurociência contemplativa (como os trabalhos de Davidson, Tang e Vago) demonstram que práticas como meditação, terapia cognitivo-comportamental (TCC) e psicoterapia baseada em mindfulness promovem:
- Redução da conectividade excessiva na DMN,
- Fortalecimento da rede de saliência (especialmente a ínsula anterior e o córtex cingulado anterior),
- Maior acoplamento entre a rede executiva e a DMN — permitindo que o indivíduo observe seus pensamentos sem se identificar com eles, e escolha responder de forma adaptativa.
Esse estado não é de ausência de conflito, mas de integração funcional: o pensamento autorreflexivo não desaparece, mas é modulado por um senso de propósito, realismo afetivo e presença corporal.
3. A Perspectiva da Psicologia Complexa: Ruminação como Sombra não Integrada
A psicologia Complexa (junguiana) oferece uma leitura simbólica e estrutural da ruminação que complementa a neurociência. Carl Gustav Jung via o psiquismo como um sistema autopoiético (que se auto-organiza) e autorregulador, composto por estruturas dinâmicas: o ego, o inconsciente pessoal, o inconsciente coletivo, os arquétipos e, crucialmente, a sombra.
A sombra é o conjunto de conteúdos psíquicos inconscientes que foram reprimidos, negados ou não integrados — frequentemente por serem considerados inaceitáveis pelo ego ou pela moral social. Quando a sombra não é reconhecida e integrada conscientemente, ela age autonomamente, gerando projeções, conflitos internos e perturbações emocionais.
A ruminação, nessa perspectiva, pode ser entendida como um sintoma de uma sombra não integrada. O indivíduo fica preso em pensamentos autocentrados e negativos não porque “pensa demais”, mas porque evita entrar em contato com as emoções subjacentes e os impulsos inconscientes que esses pensamentos mascaram.
A mente, então, gira em torno de questões superficiais (“Por que isso aconteceu comigo?”, “O que eu fiz de errado?”) como forma de não enfrentar o núcleo emocional — frequentemente relacionado a vergonha, impotência, raiva reprimida ou luto não elaborado.
A praticidade mental, por sua vez, emerge quando há um movimento de individuação em curso — ou seja, quando o indivíduo está se tornando mais consciente das partes dissociadas de si mesmo e permitindo que elas se expressem de forma simbólica (arte, sonho, diálogo interno, terapia), em vez de se manifestarem como sintomas repetitivos.
Jung dizia: “Até que você torne consciente o inconsciente, ele dirigirá sua vida e você o chamará de destino.” A praticidade, então, é a capacidade de reconhecer o destino como escolha possível — uma postura de responsabilidade simbólica, não moral.
4. Entre o Neurônio e o Símbolo: Integração Terapêutica
Uma abordagem verdadeiramente integrativa não opõe biologia a simbolismo, mas os entrelaça: a neuroplasticidade é a base material da transformação simbólica, e os símbolos são catalisadores de reorganização neural.
Por exemplo, estudos mostram que a psicoterapia de orientação analítica, quando bem conduzida, promove mudanças mensuráveis em estruturas como o hipocampo (associado à memória e regulação emocional) e o córtex pré-frontal ventromedial (ligado à empatia e julgamento moral). Da mesma forma, práticas corporais — como dança, tai chi ou até mesmo caminhadas conscientes — podem modular a atividade da amígdala e fortalecer a integração corpo-mente, facilitando a saída dos ciclos de ruminação.
A praticidade mental, portanto, não é um estado estático de "não pensar", mas um modo de habitar o pensamento com liberdade. É a capacidade de:
- Pensar sem se perder no pensamento,
- Sentir sem ser engolido pelo sentimento,
- Agir sem compulsão ou evitação.
É, em última instância, uma forma de sabedoria operativa — aquela que emerge quando o indivíduo reconhece que muitos de seus pensamentos são narrativas (não fatos), que muitas emoções são sinais de necessidades não atendidas (não verdades absolutas), e que a ação autêntica brota não da certeza, mas da coragem de permanecer em movimento mesmo na incerteza.
Conclusão: Ruminação como Chamado, Praticidade como Resposta
A ruminação, longe de ser um “defeito de caráter” ou mero desequilíbrio bioquímico, é um chamado do psiquismo — um sinal de que algo precisa ser integrado, nomeado, simbolizado. Do ponto de vista neurocientífico, é um modo de processamento que foi útil em contextos evolutivos (como antecipar ameaças), mas que, em excesso, se torna disfuncional. Do ponto de vista da psicologia complexa, é a voz da sombra clamando por reconhecimento.
A praticidade mental não nega essa chamada; ao contrário, responde a ela com presença, criatividade e coragem. Não é frieza racional, mas calor simbólico: a capacidade de transformar o sofrimento em significado, a paralisia em movimento, o caos interno em narrativa coerente — ainda que provisória.
Em tempos marcados pela aceleração, incerteza e sobrecarga informacional, cultivar a praticidade mental é um ato de resistência ética e psíquica. É escolher não ser refém do passado, nem escravo do futuro, mas habitar o presente com plenitude — sabendo que, mesmo nos momentos de maior escuridão, o inconsciente trabalha em prol da integração, e o cérebro, com sua incrível plasticidade, está sempre disposto a aprender novos caminhos.
E, como diria Jung: “A saída está sempre onde a entrada foi bloqueada.” A ruminação fecha a porta; a praticidade, mesmo tímida, busca a chave — não lá fora, mas dentro de si mesma.
Psic. Cezar Camargo - Consultor Estratégico em Potencial Humano, Bacharel em Filosofia & Pesquisador da Psicologia Complexa (Junguiana) com mais de 25 anos de experiência em DHI.
Referências sugeridas (para aprofundamento):
1. Nolen-Hoeksema, S. (1991). Responses to depression and their effects on the duration of depressive episodes. Journal of Abnormal Psychology.
2. Raichle, M. E. (2015). The brain’s default mode network. Annual Review of Neuroscience.
3. Jung, C. G. (1953/1971). The Collected Works, Vol. 9, Part I: The Archetypes and the Collective Unconscious.
4. Davidson, R. J. & McEwen, B. S. (2012). Social influences on neuroplasticity. Nature Neuroscience.
5. Vago, D. R. & Silbersweig, D. A. (2012). Self-awareness, self-regulation, and self-transcendence (S-ART): A framework for understanding the neurobiological mechanisms of mindfulness. Frontiers in Human Neuroscience.

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